I. Por que Lembrar a
Reforma?
Em 31 de outubro de
1517 Martinho Lutero pregou as suas hoje famosas 95 Teses na porta da catedral
de Wittenberg. Periodicamente as igrejas evangélicas relembram aqueles eventos
que, na soberana providência de Deus, preservaram viva a sua igreja. Muitos, entretanto,
questionam essas comemorações e alguns chegam até a contestar a lembrança da
Reforma. "Por que considerar o que aconteceu há quase 500 anos?"
Seguramente muitos
não estudam a Reforma por mero desconhecimento, por falta de informação, por
não se aperceberem da sua importância na vida da igreja e da humanidade.
Entretanto, muitos procuram um esquecimento voluntário daqueles eventos do
século XVI. Martin Lloyd-Jones 1 nos fala que entre aqueles que rejeitam
a memória da Reforma temos, basicamente, dois tipos de argumentação: 1. "O
passado não tem nada a nos ensinar." Segundo este ponto de vista, o
progresso científico e o futuro é o que interessa. Firmadas em uma mentalidade
evolucionista, estas pessoas partem para uma abordagem histórica de que "o
presente é sempre melhor do que o passado" e assim nada enxergam na
história que possa nos servir de lição, apoio, ou alerta. 2. A segunda forma de
rejeição parte daqueles que vêem a Reforma como uma tragédia na história
religiosa da humanidade. Estes afirmam que deveríamos estar estudando a unidade em
vez de um movimento que trouxe a divisão e o cisma ao cristianismo. Dentro
desta visão, perdemos tempo quando nos ocupamos de algo tão negativo.
Podemos dar graças,
entretanto, pelo fato de que um segmento da igreja ainda acha importante estar
relembrando e aplicando as questões levantadas pelos reformadores. Mas é o
mesmo Martin Lloyd-Jones que alerta para um perigo que ainda existe dentro do
interesse pelos acontecimentos que marcaram o século XVI. Na realidade, ele nos
confronta com uma forma errada e uma forma certa de
relembrar o passado, do ponto de vista religioso.
A forma
errada, seria estudar o passado por motivos meramente históricos. Esse
estudo seria semelhante à abordagem que um antiquário dedica a um objeto. Por
exemplo, quando ele examina uma cadeira, ele não está interessado em saber se
ela é confortável, se dá para sentar-se bem nela, se ela cumpre adequadamente a
função de cadeira. Basicamente a preocupação se resume à sua idade, ao seu
estado de conservação e, principalmente, a quem pertenceu. Isto determinará o
valor daquele objeto para o antiquário e, conseqüentemente, o seu estudo é
motivado por essa visão.
Em Mateus 23.29-35
teríamos um exemplo dessa abordagem errada do passado. O trecho diz:
Ai de vós, escribas e
fariseus, hipócritas! ...porque edificais os sepulcros dos profetas, adornais
os túmulos dos justos, e dizeis: Se tivéssemos vivido nos dias de nossos pais,
não teríamos sido seus cúmplices no sangue dos profetas. Assim, contra vós
mesmos testificais que sois filhos dos que mataram os profetas. Enchei vós,
pois, a medida de vossos pais. Serpentes, raça de víboras! como escapareis da
condenação do inferno? Por isso eis que eu vos envio profetas, sábios e
escribas. A uns matareis e crucificareis; a outros açoitareis nas vossas
sinagogas e perseguireis de cidade em cidade; para que sobre vós recaia todo o
sangue justo derramado sobre a terra, desde o sangue do justo Abel até ao
sangue de Zacarias, filho de Baraquias, a quem matastes entre o santuário e o
altar.
Jesus diz que aqueles
homens pagavam tributo à memória dos profetas e líderes religiosos do passado.
Eles prezavam tanto a história, que cuidavam dos sepulcros e os enfeitavam.
Proclamavam a todos que os profetas eram homens bons e nobres e atacavam quem
os havia rejeitado. Diziam eles: "se estivéssemos lá, se vivêssemos
naquela época, não teríamos feito isso!" Mas Jesus não se impressiona e os
chama de hipócritas! A argumentação de Jesus é a seguinte: Se vocês se dizem
admiradores dos profetas, como é que estão contra aqueles que representam os
profetas e proclamam a mesma mensagem que eles proclamaram? Ele prova a
sinceridade deles pondo a descoberto a sua atitude no presente para com aqueles
que agora pregam a mensagem de Deus e mostra que eles próprios seriam
perseguidores e assassinos dos proclamadores da mensagem dos profetas.
Esse é também o nosso
teste: uma coisa é olhar para trás e louvar homens famosos, mas isso pode ser
pura hipocrisia se não aceitamos, no presente, aqueles que pregam a mensagem de
Lutero e de Calvino. Somos mesmo admiradores da Reforma, daqueles grandes
profetas de Deus?
Mas existe uma forma
correta de relembrar o passado. Nós a deduzimos não apenas por
exclusão e inferência do texto anterior, mas porque temos um trecho na Palavra
de Deus—Hebreus 13.7-8, que diz: "Lembrai-vos dos vossos guias, os
quais vos falaram a palavra de Deus, e, atentando para o êxito da sua carreira,
imitai-lhes a fé. Jesus Cristo é o mesmo, ontem, e hoje, e eternamente."
A maneira correta de
relembrar a Reforma é, portanto, verificar a mensagem, a Palavra de Deus, como
foi proclamada, e isso não apenas por um interesse histórico de
"antiquário," mas para que possamos imitar a fé demonstrada pelos
reformadores. Devemos observar aqueles eventos e aqueles homens, para que
possamos aprender deles e seguir o seu exemplo, discernindo a sua mensagem e
aplicando-a aos nossos dias.
II. Distorções
Verificadas na Lembrança da Reforma
Muitos de nós que
crescemos neste país de maioria católica podemos nos recordar de, numa ou outra
ocasião, termos ouvido alguma posição distorcida sobre os fatos da Reforma do
Século XVI, ou sobre os reformadores. Uma das versões comuns, na visão da
Igreja Católica, era apresentar Lutero como um monge que queria casar e que por
isso teria brigado com o papa. Outros diziam que Lutero foi alguém que
ambicionava o poder político. Ainda outros falam que Lutero era apenas um
místico rebelde, sem convicções reais e profundas. Até mesmo a descrição dele
como doente da alma, psicopata, enganador e falso profeta permanece em vários
escritos de historiadores famosos do período. 2 Um famoso autor e
historiador católico brasileiro chegou a escrever que "excomungado em
Worms, em 1521, Lutero entregou-se ao ócio e à moleza." 3
Em anos mais
recentes, um novo de tipo de abordagem da Reforma tem surgido nos círculos
católicos, que igualmente representa alguma forma de distorção. Por exemplo,
nos 500 anos do nascimento de Lutero (1983) o Papa participou de algumas
cerimônias comemorativas do evento, na Alemanha. 4 Certamente não foi por
convencimento das verdades ensinadas por Lutero, pois a igreja que representa
nada mudou doutrinariamente após a sua participação. A visita do Papa
evidencia, entretanto, uma comprovação de que a imagem de Lutero e os
princípios que pregava estão sendo alvo de revisionismo histórico e de
distorções. Diluindo-se a força das doutrinas pregadas pelos reformadores,
possibilita-se uma aproximação com os fatos históricos descontextualizados.
Em 1967, nos 450 anos
da Reforma, a revista TIME escreveu o seguinte:"O domingo da Reforma
está se tornando um evento ecumênico que olha para o futuro, em vez de para o
passado." 5 Na mesma ocasião, um semanário jesuíta fez esta
afirmação: "Lutero foi um profundo pensador espiritual que foi
levado à revolta por papas mundanos e incompetentes." 6 Podemos
ver como essa colocação faz da Reforma uma revolta contra pessoas temporais e
não contra um sistema de doutrinas de uma igreja apóstata, que persiste até
hoje.
Refletindo o
sentimento ecumênico que tem permeado a segunda metade do século XX, bispos das
igrejas católica e luterana dos Estados Unidos fizeram uma declaração
solidária, no aniversário da Reforma, dizendo o seguinte: "…recomendamos
um programa conjunto, entre os membros de nossas igrejas, de estudos, reflexão
e oração." 7 Podemos imaginar discípulos jesuítas consciente e
sinceramente fazendo estudos, reflexão e oração em comemoração à Reforma do
Século XVI? Certamente só se ignorarem os pontos fundamentais de doutrina
levantados pelos reformadores.
Refletindo uma visão
político-sociológica da Reforma, uma outra distorção permeou durante muito
tempo o pensamento revisionista da história. Na época em que o comunismo ainda
imperava na Europa oriental, porta-vozes do partido comunista da Alemanha
relembraram Lutero como sendo "um precursor da revolução." 8
III. Esquecimento
Doutrinário dos Princípios da Reforma
Muitas das ações
descritas acima, de comemoração conjunta da Reforma por católicos e
protestantes, só ocorrem porque não se fala nas doutrinas cardeais levantadas
pelo movimento do século XVI. Tristemente, temos observado que mesmo no campo
chamado "evangélico" a situação é semelhante. Raras são as igrejas e
denominações evangélicas que ensinam o que foi a Reforma do Século XVI e muito
poucas as que comemoram o evento e aproveitam para relembrar e reaplicar os
princípios nela levantados. Mais recentemente, observamos que tem sido removida
a clara linha que separa as igrejas protestantes da católica quanto ao entendimento
da fé cristã e da salvação. Esta ação, até alguns anos atrás praticada somente
pela teologia liberal, que já havia declaradamente abandonado os princípios
norteadores da Palavra de Deus, hoje está presente no campo protestante
evangélico.
A falta de
discernimento e conhecimento histórico, prático e teológico tem-se achado até
mesmo dentro do campo ortodoxo e inclui teólogos reformados e tradicionais.
Referimo-nos ao documento "Evangélicos e Católicos Juntos" (Evangelicals
and Catholics Together), publicado em 1994 nos Estados Unidos, que tem sido
uma fonte de controvérsia desde a sua divulgação.
A base e intenção do
documento foi a realização de ações conjuntas de cunho moral-político por
católicos e protestantes, 9 mas ele evidencia uma grande falta de
discernimento e sabedoria. Por exemplo, o documento encoraja a que as pessoas
convertidas sejam respeitadas em sua decisão de filiar-se quer a uma igreja
católica quer a uma protestante. 10 Essas declarações foram emitidas como
se a fé fosse a mesma, como se a doutrina fosse igual, como se a base dos
ensinamentos fosse comum, como se as distinções inexistissem ou fossem
extremamente secundárias.
A premissa básica do
documento "Evangélicos e Católicos Juntos" é que a evangelização de
católicos é algo indesejável e não recomendável, uma vez que a verdadeira fé e
prática cristã devem já estar presentes na Igreja de Roma. Em
sua essência, esse documento é a grande evidência do
esquecimento da Reforma do Século XVI e do que ela representou e representa para
a verdadeira igreja de Cristo.
Algum evangélico
poderia argumentar, "mas isso é coisa de americano, não atinge o nosso
país!" Ledo engano! A conhecida e prestigiada Revista Ultimatotrouxe
em suas páginas, no número de setembro de 1996, artigos e depoimentos, advindos
do campo evangélico conservador, refletindo basicamente a mesma compreensão do
documento "Evangélicos e Católicos Juntos," ou seja: as distinções
com relação à Igreja de Roma seriam secundárias e não
essenciais.
Tal situação reflete
pelo menos uma crassa ignorância da doutrina católica romana. Por exemplo, os
canônes 9 e 10 do Concílio de Trento, escritos no auge da Contra-Reforma mas
nunca ab-rogados até os dias de hoje, dizem o seguinte:
Cânon 9: Se alguém disser que o pecador é justificado somente pela fé,
querendo dizer que nada coopera com a fé para a obtenção da graça da
justificação; e se alguém disser que as pessoas não são preparadas e
predispostas pela ação de sua própria vontade—que seja maldito.
Cânon 11: Se alguém disser que os homens são justificados unicamente pela
imputação da justiça de Cristo ou unicamente pela remissão dos seus pecados,
excluindo a graça e amor que são derramados em seus corações pelo Espírito
Santo, e que permanece neles; ou se alguém disser que a graça pela qual somos
justificados reflete somente a vontade de Deus—que seja maldito. 11
Estas declarações, ou
melhor, maldições, foram pronunciadas contra os protestantes. Elas atingem o
cerne da doutrina da justificação somente pela fé. São afirmações
contra a defesa inabalável da soberania de Deus na salvação, proclamada pela
Reforma do Século XVI, e continuam fazendo parte dos ensinamentos da Igreja
Católica.
A visão distorcida do
evangelho e da evangelização, no campo católico romano, não é algo que data
apenas da era medieval. Veja-se esta declaração extraída da encíclica papal
"O Evangelho da Vida," escrita e divulgada à Igreja em 1995: "O
Evangelho é a proclamação de que Jesus possui um relacionamento singular com
todas as pessoas. Isso faz com que vejamos em cada face humana a face de
Cristo." 12 Certamente teríamos que chamar esta visão do evangelho
de universalismo e declará-la contrária à fé cristã histórica.
Perante esse
emaranhado de opiniões tão diferenciadas, perante o testemunho e o registro
implacável da história, perante a crise de identidade, de doutrina e de prática
litúrgica que nossas igrejas atravessam, qual deve ser a nossa compreensão da
Reforma?
IV. Considerações
Práticas Sobre a Reforma e os Reformadores
Nosso apreço pela
Reforma e suas doutrinas não deve levar-nos a uma visão utópica e idealista com
relação aos seus personagens principais. Devemos reconhecer os seus feitos, mas
também as suas limitações. É na compreensão da falibilidade humana que
detectamos a mão soberana de Deus empreendendo os seus propósitos na história.
Vejamos alguns pontos que valem a pena ser recordados:
A. Lutero foi um Homem
Falível
As 95 Teses de Lutero
13 realmente representaram um marco e um ponto de partida para a
recuperação das sãs doutrinas. Entre as teses encontramos expressões de
compreensão dos ensinamentos da Bíblia, como por exemplo na Tese 62 ("O
verdadeiro tesouro da Igreja é o sacrossanto Evangelho da glória e da graça de
Deus") e na Tese 94 ("Os cristãos devem ser exortados a seguir
a Cristo, a sua cabeça, com diligência…"). Entretanto, devemos
reconhecer que elas estão longe de serem, em sua totalidade, expressões precisas da
verdadeira fé cristã. Elas registram, na realidade, o início do
pensamento de Lutero, que seria trabalhado e refinado por Deus ao longo de seus
estudos e experiências posteriores. Vejamos os seguintes exemplos:
- Lutero faz referência ao purgatório, sem qualquer contestação à doutrina
em si, em doze das suas teses (10, 11, 15, 16, 17, 18, 19, 22, 25, 26, 29,
82). Ex.: Tese 29: "Quem disse que todas as almas no Purgatório
desejam ser redimidas? Temos exceções registradas nos casos de S. Severino
e S. Pascal, de acordo com uma lenda sobre eles."
- Além da menção aos santos na tese acima, Lutero faz referência a
Maria como mãe de Deus (Tese 75), aparentemente não no
sentido histórico do termo (o termo histórico, em grego theotokos,tinha
o propósito de reconhecer a divindade de Jesus 14), mas no conceito
católico da expressão, que infere a existência de um poder especial em
Maria. Diz a Tese 75: "É loucura considerar que as indulgências
papais têm tão grande poder que elas poderiam absolver um homem que
tivesse feito o impossível e violado a própria mãe de Deus."
- Quatro teses inferem legitimidade ao papado e à sucessão apostólica
(77, 5, 6, 9). Ex.: Tese 77: "É blasfêmia contra São Pedro e contra o
Papa dizer que São Pedro, se fosse o papa atual, não poderia conceder
graças maiores [do que as atualmente concedidas]."
Além disso,
verificamos que resquícios do romanismo se fizeram presentes na formulação da
Igreja Luterana, principalmente na sua estrutura hierárquica e na compreensão
quase católica dos elementos da Ceia do Senhor. Possivelmente também poderíamos
dizer que na Reforma encontramos individualismo em excesso e falta de unidade
entre irmãos de mesma persuasão teológica (principalmente nas interações dos
luteranos com Zuínglio e Calvino). Mas, com todas essas limitações, os
reformadores foram poderosamente utilizados por Deus na preservação das suas
verdades.
B. A Revolta de Lutero
foi Eminentemente Espiritual
Não podemos
compreender a Reforma se acharmos que Lutero liderou uma revolta contra
pessoas, contra padres corruptos, apenas. A ação de Lutero foi uma revolta
contra uma estrutura errada e uma doutrina errada de uma igreja que distorcia a
salvação. Não foi um movimento sociológico: ele não pretendia ensinar a
salvação do homem pela reforma da sociedade, mas compreendia que a sociedade
era reformada pelas ações do homem resgatado por Deus. Na realidade, a Reforma
do Século XVI foi um grande reavivamento espiritual operado por Deus, que
começou com uma experiência pessoal de conversão.
C. Lutero não Formulou
Novas Doutrinas, ou Novas Verdades, mas Redescobriu a Bíblia em sua Pureza e
Singularidade
As 95 Teses
representam coragem, despreendimento e uma preocupação legítima com o estado
decadente da igreja e com a procura dos verdadeiros ensinamentos da Palavra.
Mas é um erro acharmos que a Reforma marca o surgimento de várias doutrinas
nunca dantes formuladas. A Palavra de Deus, cujas doutrinas estavam soterradas
sob o entulho da tradição, é que foi resgatada. Uma das características comuns
das seitas é a apresentação de supostas verdades que nunca haviam sido
compreendidas, até a sua revelação a algum líder. Essas "verdades"
passam a ser determinantes da interpretação das demais e ponto central dos
ensinamentos empreendidos. A Reforma coloca-se em completa oposição a esta
característica. Nenhum dos reformadores declarou ter "descoberto"
qualquer verdade oculta, mas eles tão somente apresentaram em toda singeleza os
ensinamentos das Escrituras. Seus comentários e controvérsias versaram sempre
sobre a clara exposição da Palavra de Deus.
Mais uma vez, Martin
Lloyd-Jones nos indica "que a maior lição que a Reforma Protestante tem a
nos ensinar é justamente que o segredo do sucesso, na esfera da Igreja e das
coisas do Espírito, é olhar para trás." 15 Lutero e Calvino, diz
ele, "foram descobrindo que estiveram redescobrindo o que Agostinho já
tinha descoberto e que eles tinham esquecido." 16
V. A Mensagem da
Reforma para os Dias de Hoje
As mensagens
proclamadas pela Reforma continuam sendo pertinentes aos nossos dias. Da mesma
forma como as Escrituras são sempre atuais e representam a vontade de Deus ao
homem, em todas as ocasiões, a Reforma, com suas mensagens extraídas e baseadas
nessas Escrituras, transborda em atualidade para a cena contemporânea da igreja
evangélica. Vejamos apenas alguns pontos pregados pelos Reformadores e a sua
aplicação presente:
A. A Reforma Resgatou
o Conceito do Pecado – Rm 3.10-23
A venda das
indulgências mostra como o conceito do pecado estava distorcido na época da
Reforma do Século XVI. A igreja medieval e, principalmente, as ações de Tetzel,
fugiram totalmente à visão bíblica de que pecado é uma transgressão da Lei de
Deus e qualquer falta de conformidade com seus padrões de justiça e santidade.
A essência do pecado foi banalizada ao ponto de se acreditar que o seu resgate
podia se efetivar pelo dinheiro. É fácil vermos as implicações que a falta de
um conceito bíblico de pecado tem para outras doutrinas chaves da fé cristã.
Por exemplo: se o resgate é em função da soma de dinheiro paga, como fica a
expiação de Cristo, qual a necessidade dela? Ao se insurgir contra as
indulgências Lutero estava, na realidade, reapresentando a mensagem da Palavra
de Deus sobre o homem, seu estado, suas responsabilidades perante o Deus Santo
e Criador, e sua necessidade de redenção.
Hoje esses conceitos
estão cada vez mais ausentes da doutrina da igreja contemporânea. A mensagem da
Reforma continua necessária aos nossos dias. Estamos nos acostumando a ouvir
que todas as ações são legítimas; que pecado é uma conceito relativo e
ultrapassado; que o que importa é a felicidade pessoal e não a observância de
princípios. Mesmo nos meios evangélicos existe grande falta de discernimento —
há uma preocupação muito maior em encontrar justificativas, explicações e
racionalizações do que com a convicção de pecado e o arrependimento.
B. A Reforma Pregou a
Doutrina da Justificação Somente pela Fé – Gl 3.10-14
A Igreja Católica
havia distorcido o conceito da salvação, pregando abertamente que a justificação
se processava por intermédio das boas obras de cada fiel. Lendo a Palavra,
Lutero verificou quão distanciada esta pregação estava das verdades bíblicas —
a salvação era uma graça concedida mediante a fé. Todo o trabalho vem de Deus.
As boas obras não fornecem a base para a salvação, mas são evidências e
sub-produtos de uma salvação que procede da infinita misericórdia de Deus para
com o homem pecador que ele arranca da perdição do pecado.
Hoje estamos
novamente perdendo essa compreensão – a mensagem da Reforma é necessária. A
justificação pela fé continua sendo esquecida e procura-se a justificação pelas
obras. Muitas vezes prega-se e procura-se a justificação perante Deus através
do envolvimento em ações de cunho social.
A justificação pela
fé está sendo, ultimamente, considerada até um ponto secundário, mesmo no campo
evangélico, partindo-se para trabalhos de ampla cooperação, como base de fé e
de unidade, como vimos no pensamento expresso pelo documento já referido: Evangélicos
e Católicos Juntos.
C. A Reforma Resgatou
o Conceito da Autoridade Vital da Palavra de Deus – 2 Pe 1.16-21
Na ocasião da
Reforma, a tradição da igreja já havia se incorporado aos padrões determinantes
de comportamento e doutrina e, na realidade, já havia superado as prescrições
das Escrituras. A Bíblia era conservada distante e afastada da compreensão dos
devotos. Era considerada um livro só para os entendidos, obscuro e até perigoso
para as massas. Os reformadores redescobriram e levantaram bem alto o único
padrão de fé e prática: a Palavra de Deus, e por este padrão aferiram tanto as
autoridades como as práticas religiosas em vigor.
Hoje o mundo está sem
um padrão. Mas não é somente o mundo: a própria igreja evangélica está voltando
a enterrar o seu padrão em meio a um entulho místico pseudo-espiritual – a
mensagem da Reforma continua necessária.
Sabemos que nas
pessoas sem Deus imperam o subjetivismo e o existencialismo. A única regra de
prática existente parece ser: "Comamos e bebamos porque amanhã
morreremos." Verificamos que nas seitas existe uma multiplicidade de
padrões. Livros e escritos são apresentados como se a sua autoridade fosse
igual ou até superior à da Bíblia. A cena comum é a apresentação de novas
revelações, geralmente de natureza escatológica e com características fluidas,
contraditórias e totalmente duvidosas.
No meio eclesiástico
liberal, já nos acostumamos a identificar o ataque constante à veracidade das
Escrituras. Já vamos com mais de dois séculos de contestação sistemática da
Palavra de Deus, como se a fé cristã verdadeira fosse capaz de subsistir sem o
seu alicerce principal.
Mas é no campo
evangélico que somos perturbados com os últimos ataques à Bíblia como regra
inerrante de fé e prática. Ultimamente muitos chamados intelectuais têm
questionado a doutrina que coloca a Bíblia como um livro inspirado, livre de
erro. Podemos tomar como exemplo o caso do Fuller Theological Seminary. Esta
famosa instituição evangélica foi fundada em 1947 sobre princípios corretos.
Logo após o seu início, formulou-se uma declaração de fé que especificava:
"…os livros do Velho Testamento e do Novo Testamento…, nos originais, são
inspirados plenariamente e livres de erro, no todo e em suas partes…"
Entretanto, em 1968, o filho do fundador, Daniel Fuller, que havia estudado sob
Karl Barth, começou a questionar a inerrância da Bíblia, fazendo distinção entre
trechos "revelativos" e trechos "não revelativos" das
Escrituras. Foi seguido nessa posição pelo presidente, David Hubbard, e por
vários outros professores, todos considerados evangélicos. 17 Logicamente
não há critério coerente ou legítimo para fazer essa distinção. Subtrai-se da
igreja o seu padrão, derruba-se um dos pilares da Reforma, e a igreja é
retroagida a uma condição medieval de dependência dos especialistas que nos
dirão quais as partes em que devemos crer realmente e quais as que devemos
descartar como mera invenção humana.
No campo
evangélico neopentecostal, a suficiência da Palavra de Deus é
desconsiderada e substituída pelas supostas "novas revelações," que
passam a ser determinantes das doutrinas e práticas do povo de Deus.
Em seu Capítulo I,
Seção II, a Confissão de Fé de Westminster apresenta a
mensagem inequívoca da Reforma do Século XVI, cada vez mais válida para os
nossos dias. Ali a Bíblia é descrita como sendo a "regra de fé e de
prática."
D. A Reforma
Redescobriu na Palavra a Doutrina do Sacerdócio Individual do Crente – Hb
10.19-21
O sacerdócio
individual do crente foi uma outra doutrina resgatada. Ela apresenta a pessoa
de Cristo como único mediador entre Deus e os homens, concedendo a cada salvo
"acesso direto ao trono" por intermédio do sacrifício de Cristo na
cruz e pela operação do Espírito Santo no "homem interior." 18
O ensinamento bíblico, transmitido pela Reforma, eliminava os vários
intermediários que haviam surgido ao longo dos séculos entre o Deus que salva e
o pecador redimido. Na ocasião, esse era um ensinamento totalmente estranho à
Igreja de Roma, que sempre se apresentou como tendo a palavra final de
autoridade e interpretação das Escrituras.
Lutero rebelou-se
contra o véu de obscuridade que a Igreja lançava sobre as verdades espirituais
e levou os fiéis de volta ao trono da graça. Isso proporcionou uma abertura
providencial no conhecimento teológico e religioso. Lutero sabia disso, mas
também sabia que o acesso a Deus deveria estar fundamentado nas verdades da
Bíblia, tanto assim que um de seus primeiros esforços, após a quebra com a
Igreja Romana, foi a tradução da Palavra de Deus para a língua falada em seu
país: o alemão.
O ensinamento do
sacerdócio individual do crente foi o grande responsável pelo estudo
aprofundado das Escrituras e pela disseminação da fé reformada. Levados a
proceder como os bereanos, 19 os crentes verificaram que não dependiam do
clero para o entendimento e aplicação dos preceitos de Deus e passaram a
penetrar com determinação nas doutrinas cristãs.
A mensagem da Reforma
continua sendo necessária hoje. A igreja contemporânea está multiplicando-se em
quantidade de adeptos, mas é uma multiplicação estranha porque é acompanhada de
uma preguiça mental quanto ao estudo. Parece que fomos todos tomados de anorexia
espiritual, pois nos contentamos com muito pouco, nos achamos mestres sem
estudar, nos concentramos na periferia e não no cerne das doutrinas, e ficamos
felizes com o recebimento só do "leite" e não da "carne."
A mensagem da Reforma
é necessária para que não venhamos a testemunhar a consolidação de toda uma
geração de "cristãos analfabetos." Em vez de procurarmos coisas
"enlatadas" e de deixar que apenas formas de entretenimento povoem
nossas mentes e corações, devemos lembrar-nos constantemente da importância de
"guardar a palavra no coração."
Precisamos nos
aperceber de que o conteúdo da Palavra de Deus é verdade proposicional
objetiva. Mas essa objetividade tem que ser acompanhada do nosso estudo e da
nossa capacidade de compreensão, sob a iluminação do Espírito Santo, e da
aplicação coerente dos ensinamentos dessa Palavra em nossas vidas.
E. A Reforma
Apresentou, de Forma Clara e Inequívoca, o Conceito da Soberania de Deus —
Salmo 24
Na ocasião da
Reforma, as expressões de religiosidade tinham se tornado totalmente
centralizadas no homem. Isso ocorreu principalmente pela grande influência de
Tomás de Aquino na sistematização do pensamento católico romano. Abraçando as
idéias de Pelágio, Aquino enfatizou fortemente o livre arbítrio do ser humano,
desconsiderando a gravidade da escravidão ao pecado que o torna incapaz de
escolher o bem, a não ser que a ele seja direcionado por Deus. Lutero
reconheceu que a salvação se constituía em algo mais que uma mera convicção
intelectual. Era, na realidade, um milagre da parte de Deus e por isso ele
tanto pregou como escreveu sobre "a prisão do arbítrio." Costumamos
atribuir a cristalização das doutrinas relacionadas com a soberania de Deus a
João Calvino apenas, mas o ensinamento bíblico de Lutero traz, com não menor
veemência, uma teologia teocêntrica na qual Deus reina soberanamente em todos
os sentidos.
Hoje, a mensagem
continua a ser necessária, pois o homem, e não Deus, permanece no centro das
atenções. Mesmo dentro dos círculos evangélicos, nossa evangelização é
efetivada tendo a felicidade do homem como alvo principal, e não a glória de
Deus. Até a nossa liturgia é desenvolvida em torno de algo que nos faça
"sentir bem," e não com o objetivo maior da glorificação a Deus.
Nesse aspecto, deveríamos estar atentos à mensagem de Amós, que nos ensina (Am
4.4-5) que Deus não se impressiona com uma liturgia que não é direcionada a
ele. 20 Nesse trecho vemos que a adoração realizada em Betel 21 e
Gilgal 22 tinha várias características dos cultos contemporâneos:
1. Os locais eram
suntuosos e famosos (Betel possuía belas fontes no topo da montanha).
2. A periodicidade
dos cultos e possivelmente a freqüência era exemplar (reuniam-se diariamente).
3. As contribuições
eram generosas, superando até os padrões de Deus (de três em três dias traziam
as ofertas).
4. O louvor era
abundante (sacrifícios de louvor eram ofertados; Am 5.23 e 6.5 também fala do
estrépito dos cânticos e da transbordante música instrumental).
5. Havia bastante
publicidade (as ofertas eram divulgadas e apregoadas).
6. Havia alegria e
deleite geral nos trabalhos ("disso gostais," diz o profeta).
O resultado de toda
essa adoração centralizada no homem foi a mão pesada de Deus em julgamento
sobre aquela sociedade insensível (com aquele culto, as pessoas, dizia o
profeta, "multiplicavam as suas transgressões"). Realmente, à
semelhança da Reforma, precisamos resgatar a pregação da soberania de Deus e
demonstrar essa doutrina na prática de nossas vidas e na de nossas igrejas.
Conclusão
Devemos reconhecer a
Reforma como um movimento operado por homens falíveis, mas poderosamente
utilizados pelo Espírito Santo de Deus para resgatar suas verdades e preservar
a sua igreja. Não devemos endeusar os reformadores nem a Reforma, mas não
podemos deixá-la esquecida e nem deixar de proclamar a sua mensagem, que
reflete o ensinamento da Palavra de Deus aos dias de hoje. A natureza humana
continua a mesma, submersa em pecado. Os problemas e situações tendem a
repetir-se, até no seio da igreja. O Deus da Reforma fala ao mundo hoje, com a
mesma mensagem eterna. Devemos, em oração e temor, ter a coragem de proclamá-la
à nossa igreja.
English Abstract In his essay Portela shows how modern references to
the Reformation have distorted its main thrust – the reformers have been
presented with characteristics that vary from narrow-minded men, seekers of
their own interests, to socio-political revolutionaries. Also, the Reformation
has lately been celebrated as an ecumenical event rather than a reaffirmation
of cardinal doctrines buried by Roman Catholic tradition. The result has been
the loss, for today’s evangelical church, of the distinctiveness that prompted
the Reformation. Commenting about the document "Evangelical and Catholics
Together," Portela points out that the historical revisionism of the
Reformation has diluted the doctrine of salvation, even in reformed circles.
Recognizing that the Reformers were fallible men, and that even the 95 Theses
have theological flaws, Portela states that the Reformation was essentially a
spiritual movement in which the Bible and its teachings were rediscovered in
purity and uniqueness. It is not precise, therefore, to say that new doctrines
were formulated by that movement. Portela finds the modern church lacking,
among other things, in its emphasis on the concept of sin, of justification by
faith alone, of the vital authority of the Word of God, of the priesthood of
the believer, and of the sovereignty of God. One of the examples given to
substantiate his claims is the gradual departure from biblical inerrancy shown
at mainline evangelical seminaries, such as Fuller. In his conclusion, Portela
calls the church to have courage to continue proclaiming the eternal message of
the God of the Reformation.
Notas
1 D. M.
Lloyd-Jones, Rememorando a Reforma (São Paulo: Publicações
Evangélicas Selecionadas, 1994) 2-5.
2 O Rev. Sabatini
Lalli compila várias dessas distorções em seu livro Lutero: Cinco
Séculos Depois (São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1983) 4-5.
3 Plínio Corrêa de
Oliveira, Folha de São Paulo (10.01.1984), 2. O autor cita uma
carta de Lutero a Melanchton para provar o seu ponto, na qual Lutero reclama da
sua preguiça. Provavelmente as colocações expressam o profundo sentimento de
incapacidade perante as grandes tarefas que confrontam os cristãos verdadeiros
e responsáveis. O autor parece desconhecer que enquanto Lutero se entregava
"ao ócio e à moleza," como diz, ele entre outras coisas traduziu a
Bíblia em sua totalidade.
4 Jornal de
Brasília—Caderno Internacional (10.11.1983), 11, e Isto É(09.11.1983),
37.
5 Time (24.03.1967),
citado por Dr. Allen A. MacRae em Luther and the Reformation(New
York: American Council of Christian Churches, 1967) 2.
6 MacRae, Luther
and the Reformation, 2.
7 Ibid.
8 Time (24.03.1967),
citado em The Christian News (N. Haven: Lutheran News, 1983);
(27.06.1983), 18.
9 Reconhecemos que
algumas dessas ações possuem validade moral, como, por exemplo, levantar a voz
conjunta da sociedade contra o crime do aborto, contra a promiscuidade
defendida pelos meios de comunicação, etc.
10 O cristão que
"…experimentou a conversão…" deve ser "…continuamente
respeitado... em sua decisão acerca de compromisso e participação
comunitária…" Também, "…os que são convertidos… devem receber plena
liberdade e respeito para analisar e decidir em que comunidade irão viver a sua
nova vida em Cristo."
11 Transcritos
no Western Reformed Seminary Journal 2/2 (verão 1995) 15.
12 Encíclica Evangelium
Vitae, pt. 81.
13 O texto completo
das 95 teses em inglês pode ser obtido através da Internet, no
seguinte endereço: http://www.bibleclass.com/lib/95.htm.
14 Termo utilizado na
igreja desde Orígenes (Escola de Alexandria), atacado por Nestório no quinto
século, mas aprovado e acolhido pelos Concílios de Éfeso (431) e Calcedônia
(451). Posteriormente, a Igreja Católica veio a distorcer o significado de
"Mãe de Deus" — em vez de representar uma defesa da divindade de
Cristo, o termo passou a expressar uma situação privilegiada de Maria em poder
e essência, como objeto próprio de adoração e fonte de poder.
15 Lloyd-Jones, Rememorando
a Reforma, 8.
16 Ibid.
17 Harold
Lindsell, The Battle for the Bible (Grand Rapids: Zondervan,
1976) 106-121. Exemplos de outros autores famosos (considerados evangélicos)
que questionam a inerrância: Paul K. Jewett e George Eldon Ladd.
18 Ef 2.18 e 3.16.
19 At 17.11.
20 Várias mensagens
expositivas sobre os alertas de Amós, e a sua aplicabilidade aos nossos dias,
têm sido proferidas pelo Rev. Dr. Augustus Nicodemus Lopes (1995-1997), das
quais alguns destes pontos foram extraídos.
21 Betel (casa
de Deus): cidade em Samaria, lugar de adoração dos cananeus (El, Baal).
Contrasta com o templo dos judeus, chamado de Beth Yaweh, a casa de
Jeová.
22 Gilgal: existem
várias na Bíblia (pelo menos seis). Esta deve ser a de Js 4.19, Jz 2.1 e 3.19,
que ficava perto de Jericó, chegando a abrigar a arca do concerto (Js 18.1).
Outros acham que seria a de 2 Rs 2.1-4. Saul utilizou a primeira como base de
operações contra os amalequitas. Os 12.11 indica que virou local de
sacrifícios. Etimologicamente, pode ter seu significado ligado a um
"círculo de pedras."